PIB per capita cabo verdiano entre o mito e a realidade
O mito começa na própria natureza do PIB per capita, que é uma média aritmética que diz pouco sobre a vida concreta dos cidadãos e ainda menos sobre as capacidades reais de desenvolvimento de um país com as caraterísticas de Cabo Verde. Na verdade, esse famoso indicador é uma medida útil para dividir o valor da atividade económica de um país pelo número de habitantes. É uma média, mas não diz nada sobre a distribuição da riqueza. E, como advertiu Angus Deaton, Nobel de Economia, não podemos ignorar a desigualdade apenas porque a média cresce. Um dos melhores exemplos da ilusão causada por esse tipo de médias foi dado pelo renomado poeta e matemático chileno Nicanor Parra: “Há dois pães. Você come dois. Eu, nenhum. Consumo médio: um pão por pessoa.”
Até
mesmo do ponto de vista do debate teórico, há consenso de que não basta apenas
olhar para o PIB per capita. O foco deve estar nas oportunidades reais que as
pessoas têm para viver uma vida plena, e não apenas no nível médio de
rendimento do seu conjunto. Nesse espírito, Joseph Stiglitz, também Nobel de
Economia, chamou o PIB per capita de indicador “mágico”, capaz de atrair
atenções políticas, mas incapaz de captar a distribuição de riqueza, a
qualidade de vida ou a sustentabilidade ambiental. Amartya Sen, outro Nobel de
Economia, advertiu que o verdadeiro desenvolvimento deve ser medido pelas
“capacidades” das pessoas – a liberdade de escolher um modo de vida que
valorizem – e não meramente por agregados monetários. Essa visão é crucial para
Cabo Verde, onde o desafio não é apenas gerar riqueza, mas garantir que essa
riqueza se traduza em melhores capacidades e oportunidades para todos os
cidadãos.
Aplicadas
ao caso cabo‑verdiano, essas críticas ganham contornos muito específicos. De
facto, o recente aumento do rendimento per capita não se traduziu, até ao
momento, em melhorias significativas no Índice de Desenvolvimento Humano, onde
Cabo Verde permanece na 135.ª posição mundial, nem num aumento consistente do
acesso a cuidados de saúde de qualidade, nem em reformas educativas que
garantam qualidade de ensino e empregabilidade bem remunerada e sustentável. As
infraestruturas, sobretudo rurais, continuam precárias e a diferença entre
ilhas e bairros torna‑se cada vez mais gritante. Pelo menos, 23,8% do total de
jovens entre 15 e os 35 anos encontram-se sem emprego e fora de qualquer
estabelecimento de ensino ou formação, o que acentua a negação da igualdade de
oportunidades e tratamento, perpetuando ciclos de exclusão social. O
coeficiente de Gini – o índice que mede a equidade na distribuição de
rendimento de um país – terá aumentado de 42,4 em 2015 (INE) para 50,9 em 2019
(estimativa do World Economics), um nível elevado mesmo segundo padrões
africanos, demonstrando que grande parte do rendimento agregado concentra‑se em
estratos restritos e revelando desigualdade acentuada. Assim, o cidadão médio
descrito pelas estatísticas é, na verdade, uma abstração: Mais de metade da
população cabo‑verdiana sobrevive com muito menos do que os tais 5 329 USD por
ano.
Outro
equívoco comum é confundir crescimento do PIB com aumento da capacidade interna
de geração de prosperidade. O indicador de rendimento per capita cresceu, sim,
mas não necessariamente à custa de uma maior capacidade interna de criação de
riqueza. De facto, Cabo Verde depende fortemente de importações de alimentos,
combustíveis, máquinas e bens de consumo. Isso faz com que grande parte do que
o país produz em valor saia logo de novo do circuito económico nacional. A
expansão económica recente foi puxada por fatores externos – principalmente o
turismo e as remessas da diáspora – e não por maior capacidade produtiva
interna. O turismo de sol e mar, concentrado em Sal e na Boavista e dominado
por grandes cadeias estrangeiras “tudo incluído”, gera PIB, mas alimenta
principalmente economias externas, com fracos encadeamentos locais e pouco
valor retido. Nem os lucros dos hotéis, nem a maior procura no comércio
significam necessariamente mais riqueza para os cabo‑verdianos, uma vez que, em
muitos casos, esses lucros são repatriados para o exterior. As remessas da
diáspora, que representam mais de 12 % do PIB, sustentam o consumo de muitas
famílias, mas não refletem criação de riqueza dentro do território nacional.
São importantes, claro, mas não estruturais. Nesse modelo, o dinheiro chega de
fora para dentro e não resulta de cadeias produtivas nacionalmente
diversificadas – o que alguns economistas chamam de “economia eternamente
financiada de fora”.
Além
disso, o próprio salto estatístico de Cabo Verde deveu‑se a razões pontuais:
uma taxa de câmbio euro/dólar favorável (o escudo cabo‑verdiano é indexado ao
euro) e uma revisão em baixa de 12,8 % da população residente pelas Nações
Unidas, resultado, sobretudo, da emigração. Esses ajustes elevaram
artificialmente o RNB per capita sem que houvesse mudança estrutural nas
capacidades económicas. Isto significa que, sem qualquer mudança estrutural,
uma inversão cambial ou uma nova correção demográfica poderá, no futuro,
devolver o país ao grupo anterior, sem que tal implique qualquer decréscimo
real do bem‑estar dos cabo‑verdianos.
Em
suma, o PIB per capita, apesar de útil enquanto régua de comparação
internacional, está longe de ser um espelho fiel da realidade socioeconómica
cabo‑verdiana. O que a estatística revela é apenas parte da história. A outra
parte – desigualdade, fragilidade produtiva, dependência externa – permanece
encoberta por números que, à primeira vista, parecem promissores.
É por
isso fundamental olhar para além do PIB per capita. Assim, para que o rótulo de
“rendimento médio‑alto” se traduza num avanço tangível na qualidade de vida das
pessoas, será preciso repensar profundamente o modelo económico e investir em
capacidades produtivas internas. Neste particular, é urgente que se abracem
políticas de diversificação económica, de forma a reduzir a dependência do
turismo de sol e praia e fortalecer outros setores como a economia azul, o digital
e a indústria, impulsionando o crescimento sustentável e resiliente. Importa também
reduzir desigualdades e construir um Estado socialmente inclusivo.
Sem
isso, o novo estatuto internacional será apenas isso: um estatuto elegante, mas
enganador e possivelmente efémero.
Praia, 26 de julho de 2025
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