Sociedade civil adormecida e "doutores clandestinos". Desperta, Cabo Verde!
Uma sociedade civil ativa e participativa é crucial para o fortalecimento da democracia, bem como para um desenvolvimento social e económico equitativo. A sua importância reside na capacidade de influenciar políticas públicas, promover a justiça social, garantir o respeito pelos direitos humanos e reforçar a estabilidade democrática. De facto, sem uma sociedade civil robusta e interventiva, o poder político governa com menos escrutínio e com menos contrapesos. As políticas públicas correm o risco de ser desenhadas e implementadas sem a devida auscultação e participação dos seus destinatários, afastando‑se das reais necessidades e aspirações da população.
Como tal, uma sociedade civil vibrante é um componente
essencial de sociedades democráticas e de economias sustentáveis, inclusivas e
bem governadas.
Em Cabo Verde, vivemos um paradoxo inquietante:
um país que, na década de 1990, emergiu como exemplo de emancipação cívica e de
participação democrática, vê agora a sua sociedade civil enfraquecida por um
silêncio quase ensurdecedor. Nessa década, surgiram inúmeras organizações
não-governamentais, associações culturais e fóruns de debate que fiscalizavam
decisões governamentais, denunciavam irregularidades e mobilizavam cidadãos.
Académicos e profissionais de diversas áreas uniram-se em redes informais para
escrutinar as políticas públicas, cobrar transparência e defender direitos.
Hoje, porém, essa energia coletiva foi substituída por uma letargia
preocupante.
O mais confrangedor neste cenário é a aparente
abdicação dos quadros mais qualificados do país – licenciados, mestres e
doutores. Aqueles que, pela sua formação e capacidade analítica, deveriam estar
na vanguarda do debate, da crítica construtiva e da proposição de soluções
encontram‑se, em grande parte, ausentes. Recolhidos numa zona de conforto,
transformaram‑se numa espécie de “doutores clandestinos”: existem, mas a sua
voz não ecoa nas praças públicas, nos jornais nem nos fóruns de discussão que
moldam o futuro do país. Em vez de se constituírem como contrapeso ao poder do
Estado, muitos optam por um perfil “clandestino”, refugiando as suas ideias em
ambientes restritos e longe do escrutínio público.
As razões para esta letargia cívica são complexas e
multifacetadas, mas algumas sobressaem pela evidência e pelo impacto corrosivo.
Em primeiro lugar, destaca‑se a excessiva partidarização da administração
pública e da vida social em geral. Instalou‑se uma cultura em que a afiliação
ou simpatia partidária se sobrepõe, em larga medida, ao mérito, à competência e
à liberdade de pensamento. Este fenómeno gera um ambiente de receio
generalizado: o medo de perder o emprego, de ver goradas progressões na
carreira ou de ser ostracizado profissional e socialmente, caso se ouse
divergir da linha oficial ou criticar o poder instituído. A máquina estatal, em
vez de ser um espaço de pluralismo e de serviço público isento, transforma‑se,
aos olhos de muitos, num campo minado onde a prudência excessiva se confunde
com a simples sobrevivência.
Paralelamente, o espaço digital, que poderia funcionar
como nova “ágora” democrática, converteu‑se num terreno hostil. No anonimato
das redes sociais proliferam pseudoperfis e robôs ao serviço de milícias digitais
– alguns dos seus integrantes são funcionários do Estado pagos a peso de ouro
–, encarregados de difamar, caluniar e ameaçar quem se atreve a desafiar o
status quo. A divulgação não autorizada de dados pessoais, o recurso a
discursos de ódio e o assédio sistemático não só intoxicam o debate como visam
silenciar, criando uma sensação de insegurança permanente. Um estudo recente da
Universidade de Lisboa indicou que uma larga maioria de jornalistas cabo‑verdianos
(62 %) sofreu ameaças online nos últimos anos, mas a violência simbólica atinge
também ativistas, académicos e funcionários públicos. A fragilidade do quadro
legislativo contra crimes informáticos e a falta de estruturas de resposta
rápida a estas ameaças agravam este ambiente de censura velada.
As consequências desta erosão da sociedade civil são
profundas e diversificadas. Primeiro, a ausência de fiscalização crítica
favorece desvios de recursos e práticas ineficientes, minando a confiança da
população nas autoridades e corroendo a perceção de legitimidade do poder.
Segundo, protestos ou manifestações pontuais carecem de estruturas de apoio
organizadas, convertendo‑se em episódios isolados que não conseguem influenciar
efetivamente os decisores. Terceiro, a atomização do ativismo – disperso em
iniciativas individuais sobretudo online – revela‑se incapaz de enfrentar
problemas sistémicos como a corrupção ou a exclusão de grupos vulneráveis,
perpetuando um ciclo de impotência cívica.
E quem parece estar mais cómodo com este quadro de
passividade é o Governo, que, perante tal situação, não hesita em apoucar a
inteligência dos cabo-verdianos ou deixar o INE “atamancar”, de forma
descarada, dados estatísticos oficiais de maior relevância, como por exemplo,
os relativos à pobreza, à inflação, ao PIB e à dívida pública. Julgo que sou o
único economista a denunciar, de modo consistente, tal situação, escrevendo
vários artigos de opinião que demonstram, com argumentos técnicos sólidos, por
que não se pode confiar nesses dados.
Para reverter este quadro de apatia da sociedade
civil, é imprescindível criar ambientes que incentivem a participação livre e
informada. Em termos gerais, é necessário, em primeiro lugar, uma firme
despartidarização da administração pública, de modo a que esta não seja
percecionada como propriedade exclusiva de quem detém o poder. Simultaneamente,
importa conferir estatutos de proteção aos funcionários, garantindo‑lhes
estabilidade e progressão na carreira e reduzindo, de forma significativa, o
risco de discriminação, de assédio laboral ou de perseguição política. No
domínio digital, urge reforçar o enquadramento jurídico dos crimes
informáticos, criar protocolos de denúncia eficazes e dotar as forças de
segurança de recursos especializados para responder em tempo útil a ameaças e campanhas
de difamação.
É imperativo resgatar o espírito participativo e a
coragem cívica em Cabo Verde. Os quadros do país, em particular, têm uma
responsabilidade acrescida: a sua formação e o seu conhecimento não são um
privilégio pessoal, mas um capital que deve servir a nação. Sair da zona de
conforto e quebrar o ciclo do medo e da autocensura não é um ato de heroísmo,
mas um dever cívico fundamental. É preciso reavivar associações, promover
debates, escrever, falar e interpelar – de forma construtiva, mas firme.
A alternativa é a contínua erosão do espaço
democrático, com uma cidadania cada vez mais apática e um poder cada vez menos
fiscalizado. Cabo Verde merece mais. Merece uma sociedade civil vibrante,
em que a inteligência coletiva, incluindo a dos seus “doutores”, não se
esconda, mas floresça à luz do dia, contribuindo para um futuro mais justo,
próspero e genuinamente democrático. O silêncio, neste contexto, não é de ouro;
é o prenúncio de um défice que pode custar caro às futuras gerações.
Praia, 14 de junho de 2025
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