O fenómeno da corrupção em Cabo Verde

A corrupção é cada vez mais considerada uma ameaça à estabilidade e segurança das sociedades, na medida em que mina as instituições e os valores da democracia, os valores éticos e a justiça, além de comprometer o desenvolvimento sustentável e o Estado de direito.
Normalmente distinguem-se dois tipos de corrupção, a pequena corrupção e a grande corrupção.
A pequena corrupção ocorre, designadamente, quando o servidor público se prevalece da sua posição para exigir uma recompensa para executar aquela tarefa que é da sua responsabilidade. Geralmente, os custos financeiros dessa ação ilegal podem não ser relevantes, sendo os seus reflexos mais percetíveis ao nível da confiança das pessoas nas instituições. Não obstante isso, a sociedade, no seu dia-a-dia, não deve desvalorizar ou normalizar os pequenos atos de corrupção, tráfico de influências e abuso de poder. Na verdade, essas práticas, aparentemente inofensivas, alimentam uma cultura de desonestidade e impunidade, criando um terreno fértil para o florescimento de formas mais graves do fenómeno da corrupção.
Já a grande corrupção acontece, nomeadamente, no desvio de recursos públicos, na apropriação de setores específicos do Estado por particulares e/ou determinados grupos de interesse, nos processos de licitações e contratos e na fiscalização tributária de empresas. Ao contrário da pequena corrupção, esse tipo de corrupção não só mina a confiança nas instituições, como também captura os recursos públicos que deveriam beneficiar o interesse coletivo, constituindo, assim, um obstáculo ao desenvolvimento económico de um país e também um entrave à justiça social e à equidade. Por isso mesmo, é a vertente da corrupção que mais preocupação suscita.
Então, sendo a corrupção um malefício amplo e grave, é preciso conhecer as suas causas e as suas manifestações, avaliar o seu alcance e adotar medidas que permitam reduzi-la, preveni-la e reprimi-la, já que não se pode ter a ilusória pretensão de se proceder à sua erradicação total.
Em Cabo Verde, sempre houve casos que se enquadram nas formas de corrupção acima referidas. Apesar disso, parece que a corrupção ainda não é um problema grave e estrutural da sociedade e do sistema político, sendo o país relativamente bem avaliado quanto à perceção da corrupção. No entanto, face à aceitação de que existe um ambiente que poderá engendrar a prática de corrupção, havendo notícias, cada vez mais frequentes, sobre indícios de atos corruptos no país, torna-se necessário questionar se os resultados obtidos com as medidas adotadas visando a prevenção e combate à corrupção têm ou não contribuído para elevar o nível de transparência e garantir a ética na condução dos negócios públicos no país.
Com efeito, não basta a um país ter um bom quadro legal e estratégias de prevenção e combate à corrupção para que haja uma redução do fenómeno da corrupção. Mais do que isso, é fundamental que as leis e os mecanismos existentes sejam efetivos no combate à corrupção. Isto é, é importante ter uma ação eficaz. Para tal, deve existir, por um lado, um interesse público significativo em garantir a transparência e integridade, e, por outro lado, a responsabilização dos detentores de cargos públicos e políticos relativamente a políticas e legislação adotadas.
Ora, as autoridades cabo-verdianas sempre deram alguma atenção ao tema da corrupção, tendo ao longo dos anos procurado criar condições institucionais e operacionais para garantir e elevar o nível de transparência na gestão dos recursos públicos. Todavia, apesar disso, existem evidências que mostram que o problema não está sendo enfrentado de maneira firme e resoluta.
Com efeito, o nono inquérito do “Afrobarometer” (AB) revelou um aumento considerável de perceção da corrupção no país, tendo 47% dos inquiridos considerado que houve um aumento da corrupção em 2022 face ao ano anterior, quando essa percentagem era de 39% em 2017, conforme referido em comunicado de imprensa do AB datado de 18jan.2023.
Por outro, nos últimos anos têm sido noticiados, nos órgãos de comunicação social, vários casos com fortes indícios de falta de transparência, de ilegalidades e de atos corruptos, como por exemplo, opacidade e desvio de finalidade na aplicação do dinheiro público, conflito de interesses e favorecimento de correligionários políticos e familiares de governantes. Nesse âmbito, o caso mais grave e preocupante, até hoje conhecido, é o relacionado com os relatórios de inspeção realizada aos fundos do turismo e do ambiente pela Inspeção Geral de Finanças (IGF), abrangendo os anos de 2018 e 2019.
Apenas no concernente ao Fundo do Turismo (FSST), a auditoria constatou várias inconformidades, nomeadamente: (i) financiamentos ilegais, através de contratos celebrados com os municípios, num total que ascende a quase 3,2 milhões de contos; (ii) casos de ajuste direto em serviços de consultoria e sem fundamentação; (iii) desvio de fins; (iv) duplo financiamento; (v) derrapagem financeira superior a 100%; e (vi) trabalhos a mais acima do limite legal e sem formalização de contrato. (Relatório de inspeção ao FSST, pág. 2 a 6).
A Câmara Municipal da Praia (CMP), liderada na altura por Óscar Santos, foi de entre todas as autarquias beneficiárias a que mais alegadas irregularidades, ilegalidades e intransparências terá cometido no financiamento de projetos com o dinheiro do FSST. Com efeito, segundo a IGF, “o processo de financiamento e concurso restrito para a execução da obra de Asfaltagem de Algumas Vias e Bairros da Cidade da Praia que engloba as obras na Zona Ténis e Zona Liceu Domingos Ramos financiadas pelo FSST não é transparente e ocorreu fora do quadro legal vigente”. Entre outras desconformidades, a IGF detetou relativamente à CMP: (i) duplo financiamento; (ii)contratação de empréstimo bancário de forma indevida; (iii) documentos referentes ao concurso restrito para contratação da empreitada com evidências de terem sido forjados – o que, a confirmar-se, constitui um crime; (iv) pagamentos indevidos no montante de cerca de 45 milhões de escudos; e (v) derrapagem financeira de 115%. (Relatório de inspeção ao FSST, pág. 4 e 5).
É preciso aguardar pela avaliação que a PGR fizer da auditoria feita aos referidos fundos pela IGF, para se aferir da gravidade ou não dos factos constantes dos respetivos relatórios. Porém, caso se confirme a justeza do julgamento feito pela IGF, estar-se-á, eventualmente, perante a mais grave situação de “manipulação de políticas, instituições e regras de procedimento na distribuição de recursos e no financiamento, por parte de decisores políticos, que abusam da sua posição para manter o seu poder, estatuto e riqueza”, de acordo com a definição dada à corrupção política pela TIP.
É de extrema importância combater a corrupção em Cabo Verde. Para tal, exige-se uma ação mais determinada das autoridades. Exige-se também uma mudança de paradigma, começando pela forma como os cidadãos encaram a sua responsabilidade.
Ou seja, a luta contra a corrupção não pertence apenas às instituições, mas é um caminho que nos compete a todos. A sociedade civil é fundamental não só para essa luta, mas também para a promoção de boas práticas e uma cultura de integridade. Neste quadro, é preciso combater a pequena corrupção, as pequenas transgressões e a tradicional “cunha” – uma questão culturalmente enraizada no nosso país.
Praia, 04 de maio de 2024
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